Um adágio popular diz que é melhor acender uma vela que praguejar contra a escuridão. A sentença moral diz muito sobre a realidade que vivemos em tempos de pandemia. Bolsonaro aparece como a representação da escuridão, o negacionismo completo. Os governadores e o Congresso, como um feixe de luz. Em meio à crise sanitária, esse é o pano de fundo que possibilita o surgimento de uma pretensão que considera que é melhor se agarrar aos governadores e Congresso do que praguejar contra Bolsonaro. No entanto, essa pretensão não é desinteressada.
Danilo Paris
Professor de sociologia da rede pública
Um dos principais debates políticos colocados na atualidade é sobre a necessidade de criar um governo paralelo ao obscurantismo bolsonarista. Busca-se alternativas de toda ordem, e fenômenos inesperados, para se dizer o mínimo, começam a parecer. Até mesmo Doria e Witzel, outrora famosos por suas inescrupulosas declarações e ações direitistas, começaram a ser depositários da fé pelo combate à epidemia, incentivados, vale dizer, por setores que se declaram do espectro de esquerda.
Após o absoluto sumiço da principal figura de oposição ao Bolsonaro antes da crise sanitária, Lula reapareceu em um vídeo, no qual articula uma linha política que caminha nesse sentido. Em entrevista gravada junto a Haddad, buscou se apoiar no Congresso e em todos os governadores para articular uma nova direção para a contenda contra o vírus. Elogia a atuação de todos os governadores, e faz questão de mencionar os do Sul e do Sudeste.
O leitmotiv do ex-presidente é se apresentar como alguém com habilidade política para lidar com essa crise. Nas suas palavras, um presidente tem que ser como um regente de uma orquestra, ou seja, um regente dos poderes, instituições, e especialistas, sugerindo que, caso estivesse na presidência essa articulação estaria a todo vapor. Reveladora dessas intenções é a reiterada insistência de Haddad em relembrar a crise econômica de 2008, e como a capacidade de articulação de Lula foi fundamental para enfrentar aquele momento. Ainda que diga que não, seu discurso é muito mais eleitoral do que propositor de ações de fundo para resolver o problema da epidemia.
Lula diz defender a atuação de um Estado forte para atuar em favor dos mais pobres. Defende a renda básica, injeção de crédito e que agora é o momento de gastar. Longe de expressar qualquer radicalismo, as medidas econômicas que propõe não se diferem muito daquelas feitas inclusive por grandes agências e instituições imperialistas, como o FMI, BID e Financial Times. A cantinela do estado mínimo e do ajuste fiscal, desmanchou-se no ar conforme a epidemia se alastrava.
Essa linha vociferada por Lula, é a mesma que vem sendo levado à cabo por todo o PT. A CUT e as centrais sindicais emitiram uma nota onde pedem que “o Congresso assuma o protagonismo”, propondo uma articulação “com o Congresso Nacional e todos os governadores, independentemente da filiação política e ideológica”. O mesmo congresso que eles reconhecem ser o mais conservador dos últimos anos. A mesma política podemos encontrar na nota assinada por todos os governadores do Nordeste.
Enquanto pedem o protagonismo do Congresso, relegam à própria sorte os trabalhadores dos transportes, telemarketing, dos correios, das fábricas, entre vários que seguem trabalhando, inclusive expostos ao contágio e sem medidas de precauções básicas.
A pergunta principal que se coloca é: a estratégia proposta por Lula e referendada pelas centrais, que busca a articulação de todos os governadores com o Congresso, seria uma alternativa para evitar milhares de mortos no Brasil?
O papel dos governadores e do Congresso
Diante da escuridão de Bolsonaro, as restritas ações promovidas pelos governos dos estados ganham uma maior projeção do que de fato possuem. Além das quarentenas, medida básica para diminuir os ritmos de contágio, não foram apresentadas nenhuma medida efetiva para uma resolução da crise sanitária. Em um país onde mais 31 milhões de pessoas (16% da população) não tem água encanada, 74 milhões (37% da população) vivem sem sistema de esgoto, e quase 6 milhões não tem sequer banheiro em casa, segundo dados do IBGE, deveria estar fora de cogitação considerar que a restrição da circulação social, em si, é uma medida eficaz para a resolução do problema.
Doria, agora vêm gravando vídeos e pousando ao lado de hospitais de campanha, como os do Pacaembu e Anhembi. Obviamente, criação de novos leitos são elementares, mas algumas centenas a mais não salvarão a vida de milhares que estão ameaçados. Enquanto promove ações com impacto midiático, sequer água, sabão, máscaras e álcool em gel estão à disposição dos trabalhadores dos transportes da maior metrópole do país.
Em outros momentos, seria aterrador o elogio de Lula às ações dos governadores da estirpe de Doria, Witzel, Leite, Zema. Não deveria ser difícil imaginar que não há nada de progressista que possa vir das mãos desses que nunca esconderam seu ódio contra os de baixo.
O PT prefere o protagonismo dos governadores e do Congresso, do que dos trabalhadores
Fato é que nem Lula, nem os governadores do PT do Nordeste, propõe medidas que poderiam ter eficácia para salvar vidas, buscando evitar atacar o lucro e o interesse de determinados grupos econômicos.
Para citar apenas algumas dessas medidas que passam ao largo do horizonte de atuação do petismo. A começar pela testagem massiva, que sem ela, não é possível haver qualquer planejamento sério de enfrentamento à epidemia como mostra a experiência da Coreia do Sul e Alemanha. Ainda, o complexo hoteleiro, moradias e imóveis ociosos, deveriam ser imediatamente destinado para abrigar aqueles que estão contaminados, sejam assintomáticos ou com sintomas leves, sendo assistidos por especialistas e nutricionistas. Para isso, contratação massiva de profissionais da saúde. Os setores industriais, com capacidade para produzir os equipamentos de UTI (como respiradores) ou de EPIs, como máscaras e álcool em gel, deveriam ser imediatamente reconvertidos para esse fim, sem qualquer indenização. Também os sistemas de saúde deveriam ser centralizados imediatamente, pondo fim a divisão entre público e privado. A produção e distribuição massiva de alimentos e itens de higiene básicos deveria estar ocorrendo há muito tempo. Articulado com isso, a proibição das demissões, suspensão do pagamento das contas de água, luz e aluguel e o aumento da remuneração do auxílio emergência para que a população trabalhadora não morra de fome.
Os recursos para tudo isso existem e podem ser disponibilizados imediatamente, não apenas das reservas em dólares, como defende Lula, mas da taxação dos lucros dos bancos, das grandes fortunas e de uma completa reorganização dos gastos do Estado com o fim do pagamento da dívida pública. Como ilustração do tamanho desses recursos, apenas o Itaú registrou ganhos de R$ 26,583 bilhões em 2019. Assim, só com os lucros de um grupo econômico, seria possível fazer 354 milhões de testes. Muito mais do que toda a população brasileira.
O problema é que medidas como essa, atacam diretamente o interesse e o lucro dos capitalistas. Apenas com a quarentena em curso, já vimos a sandice capitalista de alguns setores como Luciano Hang da Havan, ou Junior Durski do Madero. Para implementar as medidas mencionadas acima, a resistência burguesa seria infinitamente maior, e a aparente união que hoje parece haver entre os distintos partidos burgueses iria pelos ares. É justamente essa indisposição e enfrentamento que nem Lula nem o PT pretende criar.
No entanto, esse choque de interesses é produzido não pelas intenções de tal ou qual ator político. Ele é produzido por antagonismos de classe, e como a realidade internacional vêm mostrando, cedo ou tarde, irão se impor também aqui. O PT, como partido que já teve seu lugar ao sol na administração do Estado capitalista brasileiro, nunca se propôs, e nunca irá se propor à essa tarefa. Ao contrário, seu papel histórico sempre foi o de conter as reivindicações das massas aos estreitos limites do regime capitalista. Por isso, não alentarão que a classe trabalhadora seja a protagonista para a resolução dessa crise, relegando essa tarefa aos governadores e ao Congresso. Por isso, confiam e apostam em Doria e Maia, e não nos trabalhadores auto-organizados.
O PT fecha os olhos para importantes ações operárias que começam a ocorrer em todo o mundo, como nos EUA, Estado Espanhol, França, e a mais contundente delas até agora, a greve geral imposta pelos trabalhadores italianos. Essas ações operárias, que clamam em alto e bom som que "nossas vidas valem mais do que seus lucros" deveria ser ponto de apoio para qualquer saída para crise.
Pior ainda, dirigindo a maior parte dos sindicatos pelo país, estão contra alentar que eles ocorram. Enquanto isso, imploram ao Congresso dos golpistas e inimigos dos trabalhadores, artificies e implementadores da reforma da previdência e trabalhista, entre inúmeros outros ataques, que assumam a dianteira diante da crise.
Retomando o adágio, a linha genocida de Bolsonaro é utilizada por outros atores burgueses que buscam se apresentar como um farol em meio a escuridão. No entanto, vistos de perto, não passam de relampejos que não fazem nada mais do que produzir sombras.
Lula, apoiando os governadores e o Congresso é parte fundamental para alentar que das sombras ganhem renovadas forças velhos inimigos da classe trabalhadora e do povo pobre.
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